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Médicos Internos
O desafio de ser médico no SNS
BRUNO SEQUEIRA CAMPOS
INTERNO DE MEDICINA INTERNA NA ULS REGIÃO DE LEIRIA
O Serviço Nacional de Saúde (SNS) talvez enfrente hoje o maior desafio desde a este é-lhe negado com o argumento que esta já foi usufruída na semana anterior
sua criação. Nunca se viu um serviço tão diferenciado, complexo e de alta qua- ao banco de urgência.
lidade, mas ao mesmo tempo tão carente, estruturalmente frágil e com dificul- Apesar disso, a realidade é que o médico interno tanto não usufrui em tempo útil
dades de gestão como nos dias de hoje. “A Medicina não se aprende nos livros, do descanso compensatório do domingo ou feriado trabalhado, como, na maioria
aprende-se a ver doentes”. Todos ouvimos esta expressão por um ou outro pro- das vezes, nessa semana acaba por trabalhar 6 dias.
fessor durante a faculdade, no entanto, só quando chegamos aos hospitais e Paralelamente, se um interno está escalado para uma urgência noturna, muitas
centros de saúde, em particular ao internato de formação especializada, é que vezes são recrutados para serviço de enfermaria durante a manhã do dia do banaprendemos o seu verdadeiro valor. Para aprendermos a ver doentes, há que ha- co, o que é ilegal. Claro está que a realidade é muito variável consoante a espever quem nos ensine. Com a saída de médicos especialistas, além do problema cialidade e o hospital. No entanto, o que não é mutável é que, além de todo o trano imediato, através do encerramento de urgências, tempos de espera desade- balho extra, remunerado e não remunerado, que executamos enquanto médicos,
quados para cirurgias, consultas nos cuidados de saúde primários e hospitalares; continuamos a ter deveres específicos enquanto internos.
surge também um problema a longo prazo que muitas vezes é esquecido (ou até Além das mais de 40h de trabalho semanais, com infindáveis urgências noturnas
e aos fins de semanas, às quase 24 horas de trabalho contínuo, ainda temos apremesmo ignorado) pelo Governo, que é a formação médica.
sentações de serviço para preparar e apresentar, artigos que
Não são raras as vezes em que, pela escassez de especialisanalisar, casos clínicos que redigir para congressos e/ou retas, o interno de formação especializada é o elemento mais
vistas, frequentar cursos e formações, preparar ou particidiferenciado nos serviços. Inclusivamente, incide sobre ele
par em ensaios clínicos ao mesmo tempo que temos que nos
exclusivamente a tomada de decisões sobre a orientação clímanter atualizados do estado da arte de diversas áreas em
nica e terapêutica dos doentes, bem como a “supervisão disimultâneo.
reta” dos médicos internos de formação geral.
Contrariamente ao que seria suposto, o médico interno não
Ou seja, muitas urgências e internamentos deste país, funciotem no seu horário normal de trabalho um período destinanam à custa de internos a discutir orientações terapêuticas
do à componente formativa. Existem centros em que está
com outros internos. Roubando a expressão à minha oriencontemplado, porém, desses poucos são aqueles que efetitadora de formação, acaba por se tornar “um ensaio duplavamente os cumprem.
mente cego”, o que acarreta um risco tremendo para o doenOu seja, além de todo o tempo passado fisicamente no hoste, mas também para nós enquanto médicos internos, nos
pital, ainda temos de dispor daquele que deveria ser destiquais recai um grau de responsabilidade desproporcional à
nado ao nosso descanso, hobbies, aminossa formação e à nossa categoria profissional.
Raras são as vezes que um interno cumpre o horário gos e família, à componente formativa
do internato médico. Infelizmente, esse
É cada vez mais exigido aos internos que
ganhem autonomia cedo e rápido, à cus- de saída ou usufrui das folgas a que tem direito por tempo nunca mais é recuperado.
Portanto, não é de estranhar as concluta do autodidatismo e da tentativa-erro, trabalho ordinário e extraordinário.
sões do Relatório de Estudo Nacional de
na esperança em colmatar um problema
Avaliação do Burnout no internato médibasilar do SNS. Por mais que se estude e
se saiba os mecanismos fisiopatológicos, a marcha diagnóstica e terapêutica de co português, levado a cabo pela Ordem dos Médicos, que alerta para 1 em cada 4
“trás para a frente”, o raciocínio clínico só se aprende a ver doentes e com os en- médicos internos estarem efetivamente em burnout e, dos que constam do perfil
sinamentos e orientação de médicos mais experientes. Além da sobrecarga de intermédio, 55% destes encontrarem-se em risco de desenvolver a síndrome por
responsabilidade, os médicos internos são muitas vezes recrutados a cobrir a au- apresentarem sintomas severos.
sência de especialistas, especialmente nos serviços de urgência, e especialmente
Não são raros os casos em que o burnout leva à suspensão do internato e em alnas jornadas noturnas e de fins de semana.
guns casos, levam inclusivamente ao abandono da Medicina na sua totalidade e à
A carga horária semanal de um médico interno excede largamente as 40 horas escolha de outras áreas para a vida laboral.
semanais. Raras são as vezes que um interno cumpre o horário de saída ou usufrui dos descansos a que tem direito por trabalho em dia de descanso semanal É com preocupação enquanto médico interno que olho para o número crescene feriados. Muitas vezes o trabalho e a dinâmica do serviço assim o exigem, mas te de faculdades de Medicina. Preocupa-me o desconhecimento da realidade das
também porque alguns departamentos de recursos humanos pretendem explo- dificuldades da carreira médica e dos sacrifícios que estes jovens vão enfrentar,
rar ainda mais os médicos (em especial os médicos internos) e têm dificuldade assim como da contínua degradação da nossa profissão aos olhos da população
em perceber (ou fingem que não percebem) o que são descansos compensató- e do Governo.
rios e dias sem horário. Se um profissional tem o único banco de urgência dessa Quem vai formar todos estes jovens médicos se o próprio SNS não tem capacidasemana a um domingo e durante a semana que o precede (entenda-se de segun- de formar os que já tem?
da a sexta-feira) não vai ao hospital num dos dias, continua a cumprir o horário
de 40h semanais. Se posteriormente o médico interno tentar usufruir dos des- Investir na dignidade e formação dos médicos internos é assegurar o futuro da
cansos compensatórios a que tem direito por trabalho num domingo ou feriado, saúde em Portugal.
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