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Relatos SNS Saúde Pública
ESTÊVÃO SOARES
MÉDICO DE SAÚDE PÚBLICA
NA ULS OESTE
Ultimamente, tem-me ocorrido
uma história peculiar que o meu
Avô, camponês de profissão,
mas filósofo de alma, me costumava contar. Dizia-me ele que
o moleiro lá da terra, vendo o
negócio esmorecer, cuidou que
a culpa era do burro, que comia
de mais. Ora, a solução era habituá-lo a comer menos. Todos
os dias lhe diminuía a ração e o
pobre burro lá continuava a labutar. O meu avô e os vizinhos,
pasmos com tamanha bizarria,
iam avisando que tal ideia não
seria prudente, mas o moleiro,
convicto da sua ciência, estava
cada vez mais animado. E dizia-lhes, inchado, que, por este
andar, o burro deixaria de comer
A solução mais
evidente seria
“alimentar” o SNS:
melhorar as condições
de trabalho dos
profissionais, reforçar
os recursos, aumentar
a acessibilidade e
investir na prevenção
da doença.
“Todos os dias
lhe diminuía a ração,
e o pobre burro lá
continuava a labutar”
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e então seria só lucro. Só que o
burro, finalmente doente, começou a render menos. O moleiro,
julgando-o preguiçoso, tratou-lhe da albarda, acomodada ao
magro corpo do animal. Já sem
forças e sem ter por onde fugir,
o burro caiu para o lado e o moleiro, desolado, gastou o lucro e
mais algum para comprar outro.
Conhecendo o meu Avô, duvido
da inteira veracidade da história, mas como alegoria tem uma
inquietante coincidência com a
realidade: há 20 anos que assistimos a um feroz desinvestimento na saúde em Portugal e os
efeitos fazem-se sentir de forma
cada vez mais flagrante.
A solução mais evidente seria
“alimentar” o SNS: melhorar as
condições de trabalho dos profissionais, reforçar os recursos,
aumentar a acessibilidade e
investir na prevenção da doença. No fundo, continuar o legado encetado nas décadas de 80
e 90 do século passado e cujos
resultados nos colocaram no
topo dos rankings dos sistemas
de saúde, quando ajustado ao
PIB do nosso país.
Mas a “albarda” encontrada
por quem manda foi uma
desajeitada reorganização, em
tempo recorde, do modelo do
SNS: a criação das ULS. Como se
o grande e óbvio problema fosse
a organização, a gestão e não a
“falta de alimento”.
A história da criação da minha
ULS, porventura semelhante a tantas outras, foi caótica
e dolorosa, apesar do bravo
esforço dos profissionais que
a integram, como do próprio
Conselho de Administração.
Só que os problemas herdados
das instituições que a germinaram persistem.
O s t ra n s p o r te s , pa rco s e m
número, obrigam ao uso de
carro próprio para cumprir
serviço externo. As ferramentas
de trabalho são insuficientes,
defeituosas e obsoletas,
relíquias de tempos passados
desvelando cuidados de ponta.
E os serviços, débeis em profissionais, servem-se de prestadores de serviços para cumprir
mínimos, nem sempre atingidos.
Por isso, as urgências fecham
em períodos mais críticos, 43%
dos utentes inscritos na ULS não
têm médico de família e a Saúde
Pública continua sem conseguir
cumprir os rácios mínimos de
profissionais que estão legislados. A estes juntam-se os novos
problemas, aqueles que a própria ULS trouxe consigo, inerentes a uma instituição que duplicou de tamanho, mas manteve o
cinto.
E nem a promessa da tal bem-fadada “autonomia de gestão”,
que traria consigo os recursos
tão desejados, parece sossegar
os vizinhos, que olham atónitos
para o plano do moleiro.
En q u a n to i ss o, o b u r ro va i
aguentando... Esperemos que
não tenha o mesmo desfecho.